Quando o impossível se torna possível: escrevendo universos fantásticos
por Ricardo Maciel dos Anjos.
Escrever ficção – de qualquer reino, gênero ou espécie – é um tremendo exercício de imaginação. São inúmeras as variáveis em que o autor precisa pensar. Eventos, ações, consequências, tempos e espaços. Também não deixa de ser um exercício contratual, uma vez que o texto deve ser lavrado de tal maneira que não quebre o compromisso que se estabelece com o leitor – o da suspensão da descrença, no qual o leitor concorda em acreditar na veracidade do que lhe é contado nas páginas, desde que o autor não extrapole os limites do que se entende como o possível, provável e plausível dentro do mundo da escrita. Escrever não deixa de ser um exercício de psicanálise, pois, mesmo se os pensamentos dos personagens não são diretamente narrados ou seus diálogos internos explorados, são as mentes e os inconscientes deles que mais afetam – e são afetados por – tudo que ocorre nas páginas. A escrita de ficção é como o ofício de uma aranha, que tem de tecer todos os diferentes elementos numa teia equilibrada, resistente, bela e que seja capaz de capturar com sucesso sua presa… digo, seu leitor.
E quando essa aranha percebe ser dotada de poderes extraordinários? Não o de amedrontar a todos os aracnófobicos em existência – isso, qualquer aranha consegue. Refiro-me a se essa aranha se visse capaz de, além da rica e bela teia de personagens, eventos, ações, reações e pensamentos, criar toda a caverna em cujas paredes sua teia se firmará? Se ela pudesse criar toda a montanha que abriga a caverna de sua teia? Neste momento, pode-se comparar a aranha a um escritor de literatura fantástica. Aliás, chega de aranhas.
O que difere a literatura fantástica do que se chama comumente de “ficção literária” é que aquela permite que o leitor e o autor se libertem das amarras mais realistas que esta lhes impõe. Ao mergulhar no fantástico, o autor se permite sonhar, a dar forma às criaturas e circunstâncias mais improváveis. Se a raiz de toda imaginação e, portanto, ficção, é a pergunta “e se?”, a fantasia nos permite propor as respostas mais improváveis.
Você, leitor desta publicação, provavelmente tem maior contato com os subgêneros conhecidos como “realismo mágico” ou “realismo fantástico”. É o que fizeram (e fazem) autores como Gabriel García Márquez, Murilo Rubião, Angela Carter, Haruki Murakami e Jorge Luis Borges, entre outros. Nele, elementos do sobrenatural, folclórico e adventício coexistem com o mundano, o real. O que a fantasia faz é pegar esses elementos de irrealidade e expandi-los ao ponto de quase saturação. Num mundo fantástico, porcos e vacas podem voar, estátuas de pedra podem falar e andar por aí, as leis da física são opcionais, um país de lagartos bípedes pode ser a maior potência militar, linguística e cultural de um continente.
Por mais que o fantástico, o sobrenatural e o mítico tenham integrado o imaginário dos povos, das religiões e da literatura desde antes mesmo de a escrita ser inventada, a literatura fantástica contemporânea advém principalmente do autor britânico J.R.R. Tolkien, responsável por O hobbit, O senhor dos anéis, e pelas várias anotações e fragmentos que postumamente originaram O Silmarillion, dentre outras obras. Tolkien retirou diversos elementos de diversas crenças, mitologias e folclores, e os reinseriu, à sua maneira, em um mundo completamente distinto do nosso – Arda, onde fica a Terra Média. Seres que, no nosso mundo, são folclóricos, como elfos, anões, gnomos, mortos-vivos e dragões, convivem em um universo que abriga heróis, entidades análogas a deuses gregos, a anjos e mesmo ao deus supremo da tradição abraâmica.
Além de sua obra fantástica, um dos legados do linguista e professor é o artigo intitulado “Sobre histórias de fadas”, no qual discorre sobre o que considera como os principais elementos constituintes de uma história fantástica. Ele ressalta que o mais potente poder do sub criador[1] está na manipulação do adjetivo. Pois, é com o adjetivo que “podemos colocar um verde mortífero no rosto de um homem e produzir algo horrível; podemos fazer brilhar a rara e terrível lua azul; ou podemos fazer com que folhas prateadas brotem no bosque, que cordeiros tenham velos de ouro, que o verme frio tenha fogo em sua barriga”. De fato, é a maestria sobre o adjetivo que dá margem à existência de vassouras voadoras, lagartos humanoides, aranhas gigantes, vórtices chamejantes ou névoas sombrias. Mais até que apenas o adjetivo, a fantasia vem à vida graças à descrição. É através da riqueza dos detalhes e da linguagem que o implausível e o impossível se tornam realidade dentro da página.
Se, na fantasia, o impossível se torna possível, poder-se-ia construir um mundo perfeito? Uma real utopia? O próprio Tolkien já o fez, com o continente de Valinor. Trata-se de uma terra governada diretamente pelos Valar – as versões do autor de deuses ‘menores’, como os gregos e nórdicos, que têm poder e controle sobre certos aspectos da vida e da criação, como os ventos, a fertilidade, as plantas, a morte, a caça, a confecção e construção, ou a sabedoria. É uma terra sem miséria, sem dificuldades, onde o conhecimento e as artes atingem seu ápice, onde tudo é belo. Se considerarmos as narrativas mitológicas e religiosas como exemplos de literatura fantástica, o Jardim do Éden e o Monte Olimpo podem ser considerados utopias. Tratam-se todos de lugares perfeitos, ordenados. Outra coisa que têm em comum é que, em nenhum deles, o status de utopia dura. Sempre há algo que interrompe a paz eterna, que atrapalha o funcionamento da perfeição. No caso do Jardim do Éden, a primeira mulher, Eva, é induzida pelo anjo caído Lúcifer a comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, indo contra os mandamentos divinos e fazendo com que ela e Adão (e, consequentemente, a humanidade) sejam expulsos do paraíso; os deuses olimpianos, falhos e egoístas, estão sempre a tramar uns contra os outros, sempre com invejas e rancores, de maneira que qualquer harmonia no paraíso divino se torne impossível; Valinor sofre repetidamente nas mãos de Melkor, que destrói e corrompe as obras dos outros Valar, e envenena os corações dos seres vivos não divinos que lá habitam.
Aqui, chegamos a um ponto interessante: mesmo na fantasia, onde o impossível é possível e a perfeição é alcançável, utopias são insustentáveis. Afinal, toda história, toda narrativa, depende da existência de algum conflito, de alguma disrupção da ordem previamente vigente. Não só é um mundo perfeito um tédio, como da perfeição absoluta não saem boas histórias. As boas narrativas nascidas em que existem utopias advêm da exploração das rachaduras que se formam nas muralhas destes palácios ideais. É como no conto de Ursula Le Guin, “Os que se afastam de Omelas”, em que a utópica cidade de Omelas se mantém perfeita graças ao sofrimento de uma criança, trancafiada e abusada nos fundos de um porão, que serve como uma ‘esponja’ para toda a vileza do restante da população.
Acredito que a melhor maneira de escrever uma utopia fantástica é criando-a com o poder da descrição, da sub criação de Tolkien, para, na sequência, demoli-la. A destruição permeia todo o âmbito da fantasia, não só da que envolve o utópico. Invoco aqui o personagem Paul Atreides, da série de ficção científica[2] Duna, de Frank Herbert, quando diz que “o poder para destruir uma coisa traz controle absoluto sobre ela”. Creio que essa máxima apocalíptica se aplique à escrita fantástica, pois há poucas coisas tão monumentais de se descrever quanto a ruína de um paraíso, ou um mundo a se despedaçar.
Igualmente monumental, penso eu, é a tarefa de imaginar e escrever um mundo depois do fim do mundo. Quais as ramificações do cataclisma? Quem sobrevive? O que sobrevive? A não ser que o autor realmente queira acabar com o universo específico em questão, sempre há como tecer uma nova história, depois do fim. Pensemos no mundo real, no planeta Terra: a maior destruição que a humanidade pode causar contra si mesma, uma guerra nuclear com milhares de ogivas espalhando radiação e calor pela superfície, apenas tornaria o planeta inabitável para ela e a maioria dos seres vivos aqui existentes. Alguns milhares de anos depois, praticamente todo o dano já foi desfeito e a natureza curou as cicatrizes causadas pela arrogância humana. A vida continua, mesmo sem nós. Também na fantasia, o mundo, a vida e a história podem continuar, ressurgindo das cinzas do mundo anterior, tenha sido ele perfeito e utópico, ou repleto de falhas, altos e baixos, como o nosso.
[1] Tolkien era um católico muito devoto. Aos seus olhos, a única criação de fato era o mundo em que vivemos, criado pelo criador absoluto. Qualquer ato de criatividade seria, portanto, uma mera imitação do ofício deste criador supremo; um mundo idealizado pela imaginação humana seria um ‘mundo secundário’. Logo, não possuindo os atributos e faculdades do divino, um humano que imita o criador e vislumbra um universo secundário seria um ‘sub criador’.
[2] Tenho para mim que, no seu nível mais primordial, a fantasia e a ficção científica são gêneros irmãos. Ambos ousam pensar o impensável, ir além da nossa realidade, descrever o impossível, o impensável e o irreal. O que os diferencia, contudo, é que a ficção científica elabora seus universos a partir da ciência e da evolução como principais forças motrizes, enquanto a fantasia o faz com a magia. Arthur C. Clarke, porém, escreve, em Profiles of the future, que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”…
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