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[Janeiro de 2021] Diante de um Brasil destroçado e um mundo pandêmico, a Olympio n.3 escolheu como fio temático a distopia e a utopia, sem deixar de se abrir a outros temas e questões prementes do nosso tempo. Seguindo o viés da transversalidade e da diversidade das edições anteriores, inclui nomes de diferentes contextos culturais e gerações. Beckett, Maria Valéria Rezende, Milton Hatoum, Mónica Ojeda, Augusto de Campos, Djaimilia de Almeida Pereira, Francisco Alvim, Nina Maalej, Laura Erber, Stephanie Borges, Bruno Lacaz, Joaquín Torres-Garcia, Elida Tessler, Paloma Vidal, Alberto Martins, Aline Motta, Carola Saavedra e Nara Vidal são algumas das muitas presenças literárias e artísticas nas quase 400 páginas do volume.
Colaboram nesta edição
Age de Carvalho, Alberto Martins, Aline Motta, Altino Caixeta de Castro, Ana Elisa Ribeiro, Augusto de Campos, Carlos Alberto Maciel, Carlos Augusto Calil, Carlos Marcelo, Carola Saavedra, Carolina Spyer, Chico Alvim, Djaimilia Pereira de Almeida, Edson Luiz André de Sousa, Elida Tessler, Fernanda Terra, Frei Betto, Gabriela Vescovi, Glauber Rocha, Gonzalo Aguilar, Guto Lacaz, Heloísa Jahn, Joaquín Torres-Garcia, José Eduardo Gonçalves, Julio Abreu, Júlio Castañon Guimarães, Laura Erber, Luiz Henrique Vieira, Marcelino Freire, Marcílio França Castro, Marcos Siscar, Maria Aparecida Barbosa, Maria Esther Maciel, Maria Valéria Rezende, Marília Arnaud, Mário Azevedo, Maurício Meirelles, Milton Hatoum, Mónica Ojeda, Nara Vidal, Nina Maalej, Paloma Vidal, Panmela Castro, Piero Eyben, Prisca Agustoni, Samuel Beckett, Sérgio Alcides, Stephanie Borges, Ted Hughes.
Editorial
Tudo que é sólido desmancha no ar, já o sabemos há quase dois séculos. Não fosse este o brado comunista de 1848, a refletir sobre o mundo moderno envolto em
contradições e ambiguidades, e poderíamos identificar, nesta afirmação, o mote inspirador do enredo ruinoso em que nos metemos. Só que às avessas. Ao contrário
das forças em rebuliço que irrompiam no século 19, renovando ideias e conceitos, a versão brasileira do que seja mudança, atualmente em cartaz, evoca a destruição
como ato final da ópera bufa, sem nada propor de novo ou melhor. A ordem é desconstruir o projeto de civilização que, um dia, almejamos ser, abrindo as porteiras ao retrocesso galopante. No rastro da sanha destrutiva, viceja o pasto fértil à ignorância, ao fanatismo, à violência.
Diante da terra devastada, é de se perguntar: o que pode a arte, frente à brutalidade da realidade? Talvez possa muito, já que é próprio dos regimes autoritários, de qualquer natureza, a perseguição obsessiva à cultura e aos artistas, assim como a guerra permanente ao conhecimento científico, à produção intelectual e ao livre
pensamento. A truculência reconhece, na liberdade que alimenta a imaginação, uma força transgressora difícil de ser contida. As ideias, quando fora do lugar, provocam perguntas indesejadas, dúvidas incômodas, desconfortos inesperados. Elas são capazes de semear o impossível.
A ficção brasileira tem dado uma resposta sombria ao tempo presente. Há urgência em retratar a catástrofe. É neste cenário que se agiganta o sentido das utopias. Na
distopia, reina o país em ruínas, destroçado e avacalhado demais para ser levado a sério. Na outra ponta, a utopia move sentimentos, paixões, desejos. Não para manhã ou depois de amanhã. Para hoje. Agora. Eu só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder, diz a canção titânica, escrita há 40 anos. Ainda não chegamos lá. Precisamos mais do que a esperança para nos tirar do lugar de um país prometido ao futuro que nunca chega. Ter utopia é acreditar que dá pra fazer. É se insubordinar contra a maldade, a caretice, a desfaçatez.
No Brasil das trevas, são queimadas, amiúde, florestas e museus. Queima a vida enorme que habita as matas – povos, árvores, solos, animais – e queima a vida volumosa abrigada em livros, filmes, acervos científicos e históricos. Memórias tornam-se cinzas. Quando as chamas ardem no Museu Nacional ou na Cinemateca Brasileira, o que desaparece é uma parte de nós mesmos. Do que somos e do que não podemos esquecer que já fomos. Morremos um pouco, ou um tanto, a cada incêndio criminoso.
Em carta escrita em 28 de dezembro de 1980, poucos meses antes de falecer, e reproduzida nesta edição, o cineasta Glauber Rocha expõe um programa de ação capaz de salvaguardar a sua produção. Se conseguirmos, no curso de 1981, colocar em movimento internacional o grupo A, assim como a edição dos roteiros que poderiam ser editados em 1982 – eu já dormiria com a esperança de ter salvo a vida, ou os filmes. O incêndio da Cinemateca levou embora uma parte importante da memória do audiovisual brasileiro – incluindo, talvez, cópias da obra e da documentação de Glauber. A verdade é que não nos damos conta do quanto já perdemos, nesta guerra sem fim contra a estupidez.
Mais que nunca, a arte precisa exercer o seu caráter de insubmissão. É o que nos propomos aqui. De Beckett a Maria Valéria Rezende, de Torres-Garcia a Milton Hatoum, de Augusto de Campos às artistas Aline Motta e Panmela Castro que, fazendo de seus corpos morada da arte e ativismo, refletem sobre a história de milhares de mulheres negras, celebramos gestos, escritas e maneiras diversas de experimentar nosso olhar sobre a vida. Não à toa, esta é uma edição chacoalhada por poetas. Para nós, a poesia é um reduto de beleza e provocação, de investigação interior e de resposta à barbárie do real. Educar, prover, admirar, compartilhar, cooperar, são muitas as palavras carregadas de humanismo e impregnadas, em sua essência, de uma pulsão poética. São palavras inexistentes no léxico da insensatez.
O poeta Ferreira Gullar, em um de seus achados, narrou um dia banal na vida do escritor. O poeta se vê em casa, com seu gato, atento à chuva mansa. E
ele escreve: “Num dia qualquer/não existirá mais/nenhum de nós dois/para ouvir nesta sala/a chuva que eventualmente caia/sobre as calçadas da rua Duvivier”. A beleza do poema está em que o efêmero dura um só instante, ou um dia breve, mas o poeta é capaz de colher esse dia. Esta é a força da poesia. Assim é a arte, em sua irrefreável vocação para salvar o que nos escapa, o que está para se perder, o que só ela é capaz de nos fazer ver.