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[ Dezembro de 2019 ] Reafirmando as ideias de transversalidade e pluralidade, esta edição abre 30 páginas para depoimento exclusivo do líder indígena Ailton Krenak, bem como apresenta comovente perfil do diretor de teatro Zé Celso Martinez, assinado pelo amigo de infância Ignácio de Loyola Brandão. A edição revisita a poesia notável da amazonense Astrid Cabral e revela trabalhos inéditos, no Brasil, da poeta norte-americana Emily Dickinson, do cineasta britânico Peter Greenaway, da escritora romena Aglaja Veteranyl e do argentino César Aira. O poeta mineiro Adão Ventura, no aniversário de 15 anos de sua morte, é lembrado por Carlos Herculano Lopes e, em primeira mão, o poeta Ricardo Aleixo antecipa um capítulo do seu livro de memórias. A edição elenca também nomes como Guilherme Mansur, Evando Nascimento, Gustavo Pacheco, Kalaf Epalanga, Veronica Stigger, Dirce Waltrick do Amarante e Olívio Jekupe, entre outros, trazendo, ainda, ensaios visuais e fotográficos de artistas mineiros.

Colaboram nesta edição

Adalberto Müller, Ailton Krenak, Astrid Cabral, Carina Gonçalves, Carlos Herculano Lopes, César Aira, Dayane Tropicaos, Denilson Lopes, Denilson Baniwa, Dirce Waltrick do Amarante, Evando Nascimento, Fabiana Macchi, Guilherme Mansur, Gustavo Pacheco, Horácio Costa, Ignácio de Loyola Brandão, Izabela Leal, Joca Wolff, José Eduardo Gonçalves, Jussara Salazar, Kalaf Epalanga, Laura Cohen Rabelo, Luísa Horta, Marcelo Drummond, Maria Esther Maciel, Marta Neves, Maurício Meirelles, Myriam Ávila, Nicolas Behr, Nydia Negromonte, Olívio Jekupe, Patricia Azevedo, Pedro Veneroso, Peter Greenaway, Ricardo Aleixo, Ricardo Burgarelli, Sara Não Tem Nome, Sérgio Sant’Anna, Thais Guimarães, Veronica Stigger

Editorial

ESTA GUERRA NÓS
JÁ VENCEMOS

Ailton Krenak  o líder indígena e pensador que apregoa a necessidade de contar histórias para adiar o fim do mundo – sabe bem o que diz. O entrevistado desta edição é um sobrevivente de gerações de perseguidos e assassinados. Os povos indígenas não são hoje mais que 10% da população nativa que ocupava o território quando aqui chegaram os portugueses. Nunca houve trégua. Já em 1511, o fidalgo Fernando de Noronha despachou para a metrópole uma nau com 35 índios cativos, junto a uma carga de papagaios, peles de onça e toras de pau-brasil. Estava inaugurado o tráfico de escravos. Cinco séculos de genocídio não conseguiram acabar com os povos originários desta terra. De fato, eles venceram. 

Outras guerras parecem em curso permanente quando se olha para o Brasil dos últimos anos. A lama criminosa de Mariana e Brumadinho. O incêndio vergonhoso do Museu Nacional. A devastação recorde na Amazônia. O vazamento de óleo na costa brasileira. O extermínio de jovens da periferia. As crianças mortas por balas perdidas no Rio de Janeiro. As prisões lotadas como navios negreiros atravessando um rio de sangue. Os índices crescentes de feminicídioracismo e morte de pessoas com sexualidade dissidente. O desprezo pelo conhecimento – a ciência, o jornalismo, a universidade. A repulsa à cultura e aos artistas. Tudo isso é uma reiterada declaração de desamor ao país, de desapreço pela vida e de ignorância em relação às questões vitais do século XX. 

Para onde estamos indo nesta marcha desenfreada rumo ao passado e ao atraso? O projeto de país que se imaginava construir nas últimas décadas – ainda que imperfeito, desigual e cheio de lacunas – será capaz de resistir ao ataque sistemático que vem sofrendo em seus pilares mais sensíveis? Em poema do livro Sentimento do mundo, Drummond versa sobre tempos de luto, de dor e exaustão. “A noite desceu. Que noite! Já não enxergo meus irmãos.” A toada é terrível, mas o poeta alerta, mais adiante: “Havemos de amanhecer”. 

Para que serve a literatura neste entardecer de sombras? A linguagem tem caráter duplo e potente. De um lado, é guarda e memória. De outro, é capaz de reinventar o que está ao lado, as coisas, a vida em seus enredos surpreendentes. É duplamente transgressora. Por isso nos é tão necessário convocá-la para a arena onde a civilização se bate com a barbárie. 

Temos esperança? Temos Zé Celso para dizer que sim. Em retrato comovente traçado pelo amigo de infância, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, enxergamos o menino de Araraquara montando um teatrinho de bonecos sobre uma pequena mesa, no quarto dos fundos da casa. O que veio depois a gente sabe – o artista sem concessões, resistindo com sua coragem à mediocridade, à caretice, ao mofo das ideiasZé Celso e Ailton Krenak são dois xamãs cósmicos que têm em comum essa incrível capacidade de fazer da indignação e do inconformismo uma plataforma ética de intervenção no país e no planeta. Eles são orientados por um senso de humanidade que em tudo contraria a lógica perversa que rege as relações sociais, políticas, ambientais e econômicas que estão dando as cartas por aí, aqui e alhures. 

Esta edição da Olympio – de cara nova, sem medo de mudar o que acabou de começar  está carregada de indignação. Mas nossa resposta não é rançosa, nem melancólica, nem tampouco desesperadora. Ao contrário, respiramos aqui a alegria e a confiança de pensar com liberdade, de escrever com liberdade. É a certeza de que a imaginação pode nos levar bem além da curva abrupta onde termina a terra plana e deságuam as águas rasas. É também a convicção de que a coragem não advém da brutalidade, mas da delicadeza em reconhecer que só o diálogo, a tolerância e a cooperação podem ajudar a encontrar respostas para um mundo em desalinho. 

Ailton vai a todos os lugares do mundo para falar e ouvir. Para compreender e ser compreendido. Ele viaja muito e depois volta para sua aldeia, às margens do Rio Doce, entre Minas e Espírito Santo. O rio, a montanha, as pessoas, tudo é natureza, uma coisa só. Em 2015, a lama da mineração de Mariana contaminou um amplo ecossistema que inclui a Bacia do Rio Doce, o que impede a comunidade de pescar e tirar dali a sua sobrevivência. E por que vocês não saem deste lugar que está condenado? A esta pergunta, a resposta é dura, imediata. “Você abandonaria o seu avô agonizante, no momento em que ele mais precisa de você? Este rio é nosso parente, nós ficaremos ao lado dele até o fim. 

Nós ficaremos ao lado dos que resistem. Na floresta, no teatro, nos livros. Na cultura, que a tudo atravessa. Na vida, que nos espanta todos os dias.